Carrinho de madeira
Agora que sou pai, as memórias de infância me vem de forma mais completa. Antes via o mundo como filho, apenas. Era como usar uma lente em um único sentido. Entendia meu pai tão somente como alguém que recebeu a incumbência de me educar, alimentar, dar abrigo e ensinar as “coisas do mundo”.
Mas a dinâmica da vida não respeita opinião formada, tudo está em movimento. Nos modificamos tanto que nem percebemos. Aquele garoto, antes filho, hoje tem as mesmas responsabilidades que seu pai um dia teve, e só quando o papel chegou em suas mãos, é que foi perceber o peso.
Mais do que peso, percebi o quanto mudamos quando nossa hora acontece. Dizem que quando nasce um filho, também nasce um pai e uma mãe. O bonito disso é que passamos a enxergar os mesmos fatos de uma forma diferente, do outro lado da lente. A vida ganha nova análise. No mesmo compasso em que os pequenos aprendem a viver, reinventamos também nossa existência.
E nessa transformação, passamos a dar ainda mais valor aos nossos pais, percebendo que grande parte do que somos, vem deles. Literalmente devemos a eles.
Comecei esse assunto porque um fato nostálgico da infância tem rondado meus pensamentos, algo aparentemente simples, mas que acredito ser um dos pilares da minha forma de pensar. Um carrinho de madeira.
Como um carrinho de madeira pode ser tão importante?
Não é um simples carrinho de madeira. Esse brinquedo fazia parte de uma dezena de objetos contidos em um livro chamado “Faça você mesmo”. Aquele era um dos livros que eu mais gostava de folhear. Imaginar que poderíamos fazer com as próprias mãos os objetos que quiséssemos, bastando seguir as instruções, juntar as peças e praticar. Lembro de como aquilo me fascinava.
Empolgado com a possibilidade de “ter” qualquer daqueles objetos, mostrei ao meu pai o carrinho de madeira que não saía dos meus pensamentos. Na verdade era parecido com um carro de rolimã: um banquinho para a criança sentar sobre a base de madeira apoiada em quatro rodas, com freio e tudo, uma espécie rústica desses carros elétricos atuais.
Insisti tanto, que meu pai, aproveitando as férias, decidiu participar do sonho. Foi simplesmente inesquecível. Acompanhei tudo, a ida ao centro da cidade, as lojas de madeira, de peças de ferro e de rodinhas, meu pai acertando o formato das peças em casa, olhando como estava descrito no livro e fazendo tudo simplesmente igual ao que o projeto orientava. Eram momentos em que posso garantir, via meu pai como um herói. Vê-lo realizando um sonho que antes habitava só as folhas de papel da minha imaginação, era quase mágico.
Em alguns dias a obra ficou pronta, até a pintura era idêntica. Meus olhos brilharam quando andei pela primeira vez naquela “máquina” . Meus amigos eram uma mistura de vontade de pilotar e curiosidade sobre a loja em que comprei o brinquedo. É claro que com todo o orgulho, enchi a boca para dizer foi o meu pai que fez. Acho que meus amigos até hoje lembram daquele carrinho, era único.
Quando criança, não tinha tempo para reflexões, a única preocupação era brincar, curtir ao máximo o brinquedo que praticamente inventei com meu pai. Mas hoje, olhando as coisas do lado de cá da arte de educar, percebo a importância desse gesto do meu velho, e como essa experiência influencia minha forma de pensar.
É provável que a imagem desse carrinho tenha alimentado um dos principais pensamentos que costumo cultivar: nós podemos realizar qualquer sonho, basta seguir um plano, ter disciplina e objetividade.
Pensando assim, me surpreendi com a lembrança de que foi exatamente esse pensamento que nutri quando estudei para o concurso de Auditor da Receita Federal. Lembro que tinha uma confiança profunda de que conseguiria a aprovação, algo que não sabia ao certo de onde vinha. Hoje sei.
Em outros tantos momentos, seu exemplo me ensinou e ensina até hoje coisas que ainda estou digerindo nesses 45 anos de vida.
Pai, sei que você não é muito fã de facebook, notebook e essas traquitanas tecnológicas, mas essa história só consigo contar por aqui. Pessoalmente, a emoção me impede a precisão.
Tenho tanto a agradecer o que você fez por mim. Mais do que o slogan do energético, você me dá asas.
Obrigado.
Alex Viégas (12/02/2019)